Sobre a descoberta
Recebi o diagnóstico do HIV ‘por acaso’, estava num parque onde estavam fazendo testes rápidos, e como nunca tinha feito um, resolvi fazer pela primeira vez, mas com a certeza de que iria dar negativo. “Eu sou jovem, estava bem, tinha pouco tempo que me relacionava sexualmente, jamais seria soropositivo”, pensava.
Porém, o resultado não foi bem esse, o assistente social me chamou para conversar e me fez inúmeras perguntas sobre a minha sexualidade, enquanto a única coisa que eu conseguia fazer era tentar olhar o resultado sobre a mesa e pensar: “Como assim, deu reagente? Mas, só tem um ano que tenho relações sexuais e mesmo assim nunca transei sem camisinha!”, mas aceitei, escondi o resultado e o encaminhamento para o SAE (Serviço de Assistência Especializada), porque estava chocado, tentando chegar em casa, abstrair tudo aquilo e segurar todo o peso que desabou sobre mim naquele momento. Não queria compartilhar com as pessoas que estavam me esperando lá fora, tudo que eu queria era chegar em casa, desabar e ‘processar’ aquele tanto de informações. Mas, não aguentei, assim que saí do parque liguei para uma amiga, que também é minha camarada, e fui ao seu encontro. Aí sim, na companhia de mais algumas amigas e camaradas, desabei e também me senti “confortável” para desabafar e pensar em como seriam as coisas dali para frente. Tão novo, tendo que enfrentar um fantasma maior que eu e que muitos… fantasma esse que perdura por gerações.
Sobre o estigma
Ao saber que sou soropositivo me vi num novo armário, ainda mais angustiante que o da sexualidade, e, por isso, mais uma vez tive que guardar um “segredo”, e lidar com todos os meus fantasmas sem poder pedir colo para minha mãe. Imaginem só: eu quase fui expulso de casa por ser gay, agora imaginem gay e soropositivo numa família evangélica e extremamente conservadora. Isso causaria uma angústia sem precedentes para minha mãe e meu pai, justamente pela falta de debate e por conta do que foi a AIDS na década de 90. Então, antes de começar a conversar com eles sobre isso seria necessário estar fortalecido e ter, no mínimo, independência para ter mais estabilidade.
Daí em diante, minha vida mudou completamente. Comecei a trabalhar na semana seguinte, e já tive que faltar algumas vezes para ir a consultas médicas e realizar os exames necessários. Por isso também sofri assédio no trabalho, e, pouco tempo depois, fui um dos demitidos no corte de “despesas”. Imagine um funcionário recém contratado faltando mais de uma vez por semana para ir ao psicólogo, nutricionista, “clínico geral” (infectologista), fazer exames. No sistema capitalista, é inadmissível.
Tudo isso me fez despertar ainda mais para a necessidade do debate, pois, apesar de todos os avanços no tratamento médico, ainda é muito difícil conviver com o estigma que continua o mesmo da época em que a AIDS matava (e matava muito!), e isso gera uma série de complicações psicológicas. Por isso, a primeira luta é pela desconstrução dos nossos próprios preconceitos, já que a informação sobre o HIV é precária, para assim nos fortalecermos e desconstruí-los na sociedade, afinal, o mito da “peste gay”, “doença de viado”, ou do “castigo divino” ainda é muito forte. Tanto que quando Charlie Sheen revelou que era soropositivo, a imagem dele como exemplo para os heterossexuais foi arranhada e a orientação sexual do ator foi logo questionada.
Sobre a diferença entre AIDS e HIV
O debate é tão precário que muitos ainda não sabem a diferença entre HIV e AIDS, e julgam os soropositivos como “sujos” e “promíscuos” (nada muito diferente do estereótipo gay que já carrego), e ainda chamam os soropositivos de “aidéticos”, reduzindo as pessoas à doença e resgatando todo o estigma da década de 90. Agora que mal fiz eu, além de me expor em uma situação de risco? Isso não dá a ninguém o direito de me julgar e me inferiorizar, afinal, todos nós já nos colocamos em pelo menos uma situação de risco em relação ao contágio com o vírus. A única diferença é que eu o contraí.
E não, nem todo mundo que tem HIV tem AIDS. HIV é um vírus que, através da falta de tratamento, pode desenvolver a AIDS, que, por sua vez, é uma doença marcada pela baixa da imunidade, acarretada pelo descontrole do vírus, devido à falta de tratamento.
Sobre as políticas públicas acerca do HIV
Mas, o debate acerca do HIV não se resume a mera desconstrução de estigmas, é extremamente necessário fazer um recorte de raça e classe nele, pois se o debate já é precário, para nós, pretos e pobres da periferia, ele é ainda mais. Fora isso, para nós é mais difícil o acesso à camisinha e às políticas públicas. É extremamente necessário cobrar que o debate sobre DSTs seja feito nas escolas, bairros e nos locais de trabalho.
Porém, não só o debate sobre DSTs, mas sobre sexualidade mais amplamente, visto que é grande o número de jovens que estão contraindo o HIV, consequência da falta de debate sobre sexualidade e prevenção, por culpa do conservadorismo presente não só no Congresso, mas também nos governos que acham que política de prevenção é apenas distribuir camisinhas e fazer testes rápidos em alguns eventos específicos.
Se pegarmos os dados oficiais do Ministério da Saúde iremos notar que de 2007 a 2015 foram notificados 93.260 casos de HIV, sendo que entre eles, 43.877 são entre pessoas que se declaram brancas, 9.587 entre pessoas que se declaram pretas, e 30.701 se declaram pardas. Esses dados são extremamente imprecisos, devido ao mito da democracia racial, mas servem para ligarmos o alerta, e nos mostra que o HIV tem raça e classe, pois se quando muitos negros se declaram como brancos ou pardos os números já são grandes, imaginem quando a negrada tiver consciência da sua raça.
E esses dados são apenas das pessoas que foram diagnosticadas, mas justamente por falta do debate sobre prevenção e da limitação nas políticas de diagnóstico, muitas pessoas passam bastante tempo sem sequer saber que tem HIV, como seria o meu caso se não fizesse o teste naquele dia. Certamente passaria mais um bom tempo sem sequer suspeitar que sou soropositivo.
Sobre o monopólio de patentes e o desenvolvimento da cura
Logo no início da epidemia de AIDS, o Brasil mostrou para o mundo que o tratamento universal era possível, através da produção nacional que barateou imensamente o tratamento e distribuição através do SUS, assumindo assim um papel de vanguarda. Porém em 1996, com o apoio da bancada do medicamento, o Congresso alterou a lei de propriedade industrial, e os medicamentos mais novos e eficientes passaram a ser protegidos por patentes, o que impede a produção local, ou a importação de medicamentos genéricos a preços mais baixos, fazendo com que a fórmula adotada pelo nosso país, produção nacional e distribuição universal, seja aos poucos fracassada.
O que era referência no tratamento do HIV e da AIDS, por conta da distribuição dos medicamentos necessários gratuitamente através do SUS, está deixando de ser, e fortaleceu o império das patentes, submetendo nossa saúde aos lucros trilionários dos laboratórios multinacionais .
Esse quadro deve se agravar agora se a PEC 241/55 for sancionada. Pois o congelamento nos investimentos para a saúde significará relegar a própria sorte todos que padecem com o HIV ou qualquer outra doença. Sim, essa é mesmo a PEC da morte.
Desse modo, é necessário questionar o monopólio das patentes que reduz a concorrência, impede a produção de genéricos e encarecem o tratamento, fazendo com que laboratórios multinacionais lucrem escancaradamente com a nossa saúde, além da luta incansável contra a Emenda Constitucional que este Congresso corrupto e este governo golpista querem nos empurrar goela a baixo.
Sobre a necessidade de luta
Onze meses se passaram desde o primeiro comprimido de antirretroviral. Aquele que chegou causando desavenças em mim, achou o seu lugar e hoje goza de relativa tranquilidade, conquistada com muito esforço, muitas cólicas e algumas tonturas.
Foram lágrimas que muitas vezes rolaram só entre eu e elas, outras vezes compartilhadas com aquelas camaradas. Quando eu pensava que havia rompido com tudo que era necessário e enfim iria viver minha vida sem precisar esconder nada, me vejo mais uma vez trancado num armário, ainda mais angustiante, diante de uma realidade ainda mais brutal para quem ousa sair e romper.
O despertador toca todo dia às 23h para que eu tome o coquetel, que, apesar dos avanços, continua ali para me lembrar dos grilhões que me prendem, que liberdade custa caro e não foi feita para nós, e que minha saúde segue sendo comercializada, pelo menos enquanto vivermos numa sociedade capitalista, em que até nosso direito à saúde e à nossa cura estão submetidas às vontades do capital.
A cada notícia sobre uma provável cura definitiva para o HIV, meu coração se enche de esperança, e eu, no calor da expectativa, esqueço que, para me curar, é necessário que toda a sociedade seja curada, e esse é um dos motivos pelo qual eu sigo firme construindo a revolução. Pela certeza que só na luta, através da revolução socialista, conseguirei #mais. Eu sigo!
“Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão…
Eu passarinho!”
Mário Quintana.
*Texto produzido por militantes do MAIS, publicado pelo site Esquerda online